23 de julho de 2010

Oitenta e seis anos e muito entulho espalhado por todo canto em sua vida. Ele sempre foi assim, nunca conseguiu se livrar das coisas e nunca conseguiu renová-las. Na verdade eu nem sei o porque disso, já que ele nunca me contou nada. Só sei de histórias que a familia dele me conta, de que passou alguma dificuldade lá em Portugal e veio para o Brasil como muitos fizeram e, por coincidência, se casou com uma vizinha lá da terrinha, alguns anos mais jovem e mais bem de vida.

Coisas. Objetos. Mofo. Lixo. Alguns móveis antigos, bonitos. Porcelana para caralho. Muitos eletrodomésticos, sofás, armários e camas, dados por pessoas que compraram coisas mais modernas e não sabiam o que fazer com o passado. É só assim que entravam coisas diferentes em sua casa.

Sua esposa a senhora Francisca tinha um dom inigualável, o da comunicação de fatos verdadeiros ou não. Suas más intenções em informar o maior número de pessoas, eu só não diria que eram admiráveis pela perfeição, porque a ação era muito triste. No fundo ela só era uma mulher invejosa, que morava numa casa fedorenta com um homem que não conseguia se livrar nem das sujeiras que guardou nos seus poros, e no fundo, ela acabou se tornando ele.
Parou de estudar muito jovem. Talvez, se não tivesse parado, seria jornalista. Provavelmente não.

Aquela casa tinha cheiro de amônia e carne com mosca em cima.
As pessoas que frequentavam-na sentiam um mal estar inexplicável, como se tivessem uns 60 olhos de alguma coisa apodrecida os olhando, e como se em qualquer momento isso fosse os atacar. Mas na verdade não era isso. Eu pensei muito e cheguei a uma quase certeza de que era apenas o modo como eles recebiam as pessoas. Observando e guardando tudo com maldade, cada tropeço, cada jeito de falar. Sua hospitalidade era recheada de segundas intenções. Provavelmente foi assim que conseguiram tudo na vida. Fazendo um favorzinho aqui outro ali e depois relembrando e cobrando estes até depois da morte do sujeito, pobres dos filhos deles.

Eu parei de ir lá quando não tinha mais espaço para andar. A gente chegava e ficava espremidinho num canto, no meio de vitrolas, fitas cassete, livros, aparelhos de som, televisões com tela quebrada, cestas básicas fechadas, móveis, tapetes, almofadas, cortinas, colchões... Tudo isso e muito mais até o teto.
Naquela época muitos disseram para eles mudarem de casa, porque a cada carro, caminhão, onibus e bicicleta que passava na rua era como se tivesse acontecido um terremoto lá dentro. A casa era em cima de outra, e tremia tanto por causa do peso das coisas lá dentro.
Morria de medo de ficar lá, por causa dos 60 olhos, das sombras daquelas coisas todas e dos terromotos frenquentes.

Fiquei sem aparecer por anos.

Ontem eu fiquei sabendo que uma casa caiu na zona norte de São Paulo enterrando os donos da casa com tudo que eles eram: suas milhares de coisas. O funeral foi o maior do bairro e foi no local, pois devido ao peso daquilo tudo, não tinha como levar para um cemitério.

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